terça-feira, 11 de novembro de 2008

Um salto para a eternidade



DEDICATÓRIA

Para minha mãe – Cristina,
minhas irmãs – Karina e Paula
e minha avó Anna (in memoriam).

Eduardo Franciskolwisk



Todos os direitos reservados a
Eduardo Alves Machado.
Barretos – SP, 2004

Capítulo 1

Vítor era um homem rico, daqueles que faziam rascunhos em notas de cem reais.

– Dinheiro é o que não lhe falta – dizia a maioria das pessoas ao passarem em frente da sua casa.

Outras pessoas tinham até ilusões ao ver a casa.

– Olha lá! Está saindo dinheiro da janela.

– Qual das janelas? Existem tantas...

– Aquela ali, no terceiro andar.

– Nossa!! É mesmo, e são todas notas de cinqüenta.

Realmente eram todas notas de cinqüenta, mas como eu já lhes disse, não passavam de ilusões. Houve um dia que Vítor, ao chegar em sua casa na sua linda limusine, leu uma faixa pregada no muro que dizia “Eu também queria ser feliz”. E o homem rico começou a pensar se era ou não era feliz.

Ele pensou na sua mãe, em seus filhos, em sua mulher que ele amava, em outras mulheres que ele já tinha amado e que ainda amava. Mas em nenhum momento ele pensou nas suas indústrias, ou outros bens materiais.

Vítor tinha uma amante chamada Débora. Sua mulher não sabia e nem poderia saber deste caso, era uma coisa extremamente secreta e muito bem escondida. Se a imprensa soubesse, Vítor poderia dizer adeus ao seu casamento com Giovana. E não era isso o que ele queria.

A cabeça de Vítor estava muito confusa, ele não sabia qual das duas era a sua preferida. Ele amava as duas o mesmo tanto e por isso não terminava seu casamento com Giovana.

Este relacionamento “duplo” já estava sendo feito havia dois anos.

Vítor chegou a conclusão de que era feliz.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Capítulo 2

Três semanas depois dessa conclusão, Vítor estava em uma de suas indústrias, que estão espalhadas por todo o país. Parecia ser um dia normal. Débora tinha entrado na indústria sem ser vista com o motorista de Vítor e ficou na sala com Vítor durante muitas horas.

– O que você acha da idéia de nós irmos viajar juntos para fora do país? – perguntou Vítor

– Adorei a idéia, já faz tanto tempo que nós não ficamos sozinhos em um lugar onde não precisamos nos preocupar em sermos vistos juntos. Um lugar onde ninguém nos conheça. Quando vamos?

– Amanhã de noite. Está bem para você?

– Claro, para onde vamos?

– Vamos para um lugar lindo, mas não posso contar senão estraga a surpresa. Vou pedir para o Douglas te pegar na sua casa às cinco da tarde porque o avião sai às sete.

Eu acho bom explicar que Douglas era o motorista de Vítor e era o único que sabia do romance em segredo.

Os dois se despediram com um beijo e Débora foi pra casa para se preparar para a viagem. Pouco tempo depois, Vítor saiu da fábrica.

Quando chegou em casa, após matar a saudade de um dia inteiro separados, Vítor disse sobre a viagem para Giovana:

– Amanhã vou para a Inglaterra, hoje me telefonaram e pediram que eu fosse imediatamente até lá. Estão acontecendo alguns problemas e sou eu quem tem de resolvê-los pessoalmente.

– Mas e a festa que meus pais darão amanhã a noite? Eles ficarão indignados com a sua ausência. O que eu vou dizer a eles?

– Desculpe querida... mas são negócios importantes e não podem esperar. Eu telefono para os seus pais me desculpando e explicando o motivo da minha ausência. Apesar de ficarem aborrecidos, eles entenderão. Negócios são negócios.

– Quando você vai e quando você volta? – ela perguntou

– Eu vou amanha às cinco e volto dentro de uma semana. Mas porque esse interrogatório todo?

– Posso ir com você?

– Não!! – Vítor disse se assustando com a pergunta – Não que eu não queira que você vá, mas vai ser uma viagem de negócios e, além disso, só vão homens. E você sabe que eu tenho ciúmes – ele tentou se explicar.

– Tudo bem, então eu fico, eu acredito em você.

Capítulo 3

Depois da conversa, Vítor e Giovana foram para a mesa e jantaram. Não tocaram mais no assunto da viagem. Falaram sobre a festa de aniversário de Carlinhos, um de seus filhos. Carlinhos iria fazer nove anos e os detalhes era escolhido por Giovana e por Cláudia, que era a filha mais velha e que tinha doze anos.

Após terminarem os planos para a festa que seria dentro de duas semanas, foram dar uma volta pela cidade.

– Aonde vamos papai? – perguntou Carlinhos

– Hum... Eu vou deixar vocês dois escolherem, mas vocês têm de entrarem em um acordo. Caso contrário sua mãe vai escolher o lugar do passeio.

Enquanto as crianças escolhiam o lugar do passeio, Giovana perguntou:

– Por que não podemos ir nós quatro amanhã para a Inglaterra? Eu ainda não entendi.

– Eu não quero que vocês vão porque eu não vou ter tempo de ficar com vocês, vou trabalhar todos os dias que estiver lá. Eu não poderei dar atenção nenhuma para vocês e não é isso que eu quero. Nós podemos ir para a Inglaterra juntos depois do aniversário do Carlinhos. Está bem assim?

Giovana aceitou a idéia, ela chegou a pensar que estava sendo traída por Vítor, mas depois pensou mais um pouco e decidiu que estava imaginando coisas demais e que realmente confiava em seu marido.

– Queremos ir no parque de diversões – disse Cláudia.

O resto da noite foi de pura diversão, tanto para as crianças como para Vítor e Giovana. Todos deram gargalhadas até a hora de dormir. Aquela havia sido uma noite que ninguém esqueceria, e que daria boas lembranças. Lembranças que seriam lembradas com a mesma gargalhada que todos os quatro deram naquela noite.

Capítulo 4

O telefone tocou eram três e meia da manhã.

– Alô – Vítor falou bocejando

– Patrão, aqui é o Douglas.

– O que aconteceu, rapaz? São três e meia da manhã... Liga pra outro. Tem tanta gente que pode resolver os problemas das indústrias e você liga justo pra mim, às três da manhã!

– É que a coisa é grave patrão... A Débora...

– O que aconteceu com ela? – perguntou saltando da cama.

– Ela... ela morreu patrão...

Vítor ficou mudo por alguns segundos. Não conseguia falar nem uma palavra. Ele não sabia se acreditava ou não.

Enfim, conseguiu dizer:

– Como?

– A casa dela pegou fogo ontem à noite, patrão. O corpo foi encontrado a pouco tempo. Eu estou aqui no orelhão perto de onde ela morava.

– Eu estou indo para aí.

Enquanto se vestia, pensava no que tinha acontecido e se perguntava porque isso tinha que acontecer com justo com ele.

– O que aconteceu? – Giovana perguntou para Vítor quando o viu de roupa as três da manhã.

– Depois eu te explico querida, mas não é nada grave, pode voltar a dormir tranqüila.

Ela, então, voltou a dormir como se nada tivesse acontecido.

Vítor pegou as chaves do carro e saiu em disparada em direção à casa de Débora.

Chegou na casa de Débora em poucos minutos. Logo viu a multidão curiosa em saber o que havia acontecido, então ele caiu em si e percebeu que tudo aquilo não era um pesadelo, aquilo era a mais pura realidade.

– Eu daria tudo para que isso fosse apenas um sonho...

Mas não era.

Logo Vítor encontrou Douglas no meio dos curiosos. Douglas então levou Vítor para ver o corpo de Débora, que estava irreconhecível.

– E se ela não for a Débora? Talvez seja outra pessoa que estava na casa.. Ela não pode ter morrido.

Vítor estava chorando e ao escutar o que Douglas disse, ele desmaiou.

– Patrão, é a Senhora Débora sim, os policiais me confirmaram.

Douglas levou seu patrão para o hospital e Vítor só acordou horas depois.

– Onde estou? – perguntou ao acordar para a enfermeira

– Você está no hospital, mas não se preocupe porque o senhor já está bom! Poderá sair hoje mesmo.

– Você sabe onde está meu empregado? O nome dele é Douglas. É um homem alto, moreno...

– Sei sim, ele está esperando lá fora, vou dizer a ele que o senhor quer vê-lo.

– Obrigado.

E a enfermeira saiu do quarto. Pouco tempo depois entrou Douglas.

– O que aconteceu é verdade? – perguntou Vítor.

– Sim senhor. O enterro vai ser daqui a duas horas, o senhor vai querer ir?

– Porque isso foi acontecer? O que eu fiz de tão ruim para essa vida me dar essa rasteira? - nos olhos de Vitor tinham lágrimas.

– A vida, patrão, às vezes nos dá coisas que nós não merecemos, seja essa coisa, algo bom ou algo ruim. Muitas pessoas têm o prazer de fazer o mal e no entanto sempre possuem os melhores prazeres da vida. E é claro, o contrário também acontece, muitas pessoas boas não possuem nada na vida, às vezes nem o reconhecimento de seu próprio filho. E isso é um sofrimento que elas não merecem.

– Fica do meu lado? Eu tenho medo.

Douglas naquele momento era mais que um empregado, ele era um amigo. Somente os amigos nos apóiam nas horas difíceis da vida. Douglas sempre havia sido um amigo. Os amigos sabem guardar segredo, e nunca pedem nada em troca, se satisfazem somente em ser alguém em quem se pode confiar e nunca, em nenhuma hipótese, passou pela cabeça de Douglas fazer algum tipo de chantagem em relação ao amor secreto de Vítor e Débora.

Naquele mesmo dia, Vítor voltou com Douglas para sua casa e não conseguiu esconder o seu abalo e sua melancolia de Giovana.

– O que aconteceu, Vítor? Você saiu de madrugada e só voltou agora. Além disso você está muito estranho hoje, é alguma coisa relacionada ao telefonema que fez você sair de madrugada?

Vítor nada respondeu. Ele queria responder, mas havia uma força maior que sua vontade de falar que não o deixava responder para sua mulher. E isso deixou Giovana muito nervosa. Vítor naquele dia não disse mais nenhuma palavra. Ele não foi ao enterro de Débora.

Capítulo 5

A viagem foi cancelada e Vítor no dia seguinte ainda estava muito triste com a morte de Débora. E isso não é nenhuma surpresa para nós.

– Como eu viverei sem ela?

Era o que Vítor se perguntava o tempo todo.

Giovana também se fazia uma pergunta:

– O que está acontecendo com Vítor?

Apesar de pensar a manhã inteira nessa pergunta, Giovana não falou uma só palavra com Vítor.
Toda a família sentou-se na mesa para o almoço.

– Não se esqueça da festa de meus pais, será hoje. Eu estou feliz por você ter cancelado a sua viagem – disse Giovana querendo quebrar aquela má situação em que a família se encontrava.

Vítor simplesmente olhou para os olhos de Giovana e deu um sorriso sem graça. E ela teve a certeza de que algo estava errado.

Depois do almoço, Giovana foi para a casa dos pais e seus filhos a acompanharam. Eles iriam ajudar na preparação da festa.

Vítor passou a tarde inteira sozinho em sua casa. E ainda se fazia a mesma pergunta. Ele pensava que aquela pergunta ele nunca saberia responder. E então chorou.

As pessoas ficam desesperadas quando perdem alguém que amam muito. E nesse momento só o que se tem a fazer é chorar. Chorar pela morte de alguém, não significa que nunca mais veremos a pessoa; significa que vamos encontrá-la num futuro bem próximo, num lugar onde só existe felicidade.

As pessoas quando choram, não choram por tristeza, elas choram de felicidade, mas poucas sabem disso.

E Vítor não sabia.

O barulho da porta da frente fez com que Vítor enxugasse as lágrimas. Giovana havia chegado. Com uma energia positiva disse para o marido:

– Vamos nos arrumar para a festa?

– Tudo bem... – respondeu ele com o mesmo desânimo da hora do almoço.

Giovana notou novamente algo errado, mas foi para a festa como se nada tivesse acontecido.

Capítulo 6

Durante a festa, Giovana não tirava os olhos do marido. E ele não tirava a cara de babaca sofredor com a qual estava desde a morte de sua amante e nem a sua bagagem do sofá, que estava na sala mais vazia daquela imensa casa.

Ela tentou esquecer durante pouco tempo da existência de Vítor. Mas tudo foi em vão. Então, ela sem pensar, pegou a taça de vinho que passava em sua frente através das mãos do garçom e bebeu. Essa cena aconteceu mais umas seis ou sete vezes. Ela dizia pro garçom:

– Parada obrigatória para qualquer tipo de fórmula do esquecimento...

– A senhora é quem manda, madame!

Giovana tinha razão! Ela havia achado a fórmula do esquecimento. Já não se lembrava do modo estranho que estava o seu marido. Claro que ela não se lembrava! Ela tinha coisa mais importante pra fazer!

– Ei, senhor garção! Não fuja de mim... vem cá lindinho... deixa eu pegar mais uma das boas! Não precisa se preocupar, eu não colocarei a honra da senhora garça em risco... – dizia seguindo o pobre do garçom que estava a agüentando já há um tempinho!

Ela não desgrudava do garçom, onde o pobre homem ia, lá estava “A caçadora de garção”. Assim era como o pessoal da festa a chamou.

Vítor percebeu o que estava acontecendo somente quando o garçom foi servir a sala em que ele estava.

– Vai uma bebida, senhor?

– Não – respondeu Vítor olhando para Giovana e se levantando.

Ele foi em direção de Giovana e a segurou. Viu que ela tinha passado dos limites enquanto ele se preocupava com o que iria fazer da sua vida.

– Solta-me, o garção está fugindo! – ela reclamava

– E esse é o fim da “Caçadora de Garção” – um convidado da festa comentou em sua roda de amigos e todos eles riram.

Vítor colocou as crianças que estavam já dormindo no carro, e fez Giovana entrar também. Ela ainda estava preocupada em caçar garção.

Os pais de Giovana ficaram envergonhados com aquela situação.

– Eu nunca imaginei que minha filha fosse capaz disso. – disse a mãe

– Ela nunca fez isso, e tenho certeza que ela está com algum problema e não quis nos contar. – falou o pai.

– Deus existe, eu sei que existe! – pensou o garçom, ao ver “A caçadora de garção” entrar no carro e ir embora.

Capítulo 7

Naquela noite Vítor viu que uma de suas missões era cuidar das pessoas que ele amava, e ele amava sua mulher e seus dois filhos. Decidiu que viveria daquela noite em diante somente para a felicidade de sua família e assim, de sua própria felicidade.

Ele dormiu decidido a começar uma mesma vida feliz que ele levava antes da morte de Débora. E ele faria isso sem ela. Estava otimista com a idéia.

Na manhã seguinte quando Giovana acordou, estava preparada uma mesa deliciosa de café da manhã. E Vítor tinha um sorriso no rosto, dessa vez o sorriso era o sorriso mais bonito que ela já tinha visto em sua vida! Mas a primeira coisa que falou foi:

– O que aconteceu na festa ontem? Eu não me lembro de nada! A última coisa que me lembro é que eu bebia tentando te esquecer.

– Porque você estava tentando me esquecer, Gi?

– Não sei... acho que era porque você estava diferente, você estava muito estranho nos últimos dias... e eu resolvi usar a “fórmula do esquecimento” para esquecer que eu tinha problemas. Eu nunca tinha feito isso na minha vida, meus amigos na adolescência diziam que era bom, que os problemas sumiam rapidamente! E sabe de uma coisa? Funciona, pois eu não me lembro de nada!

– Eu sei que funciona, mas os problemas voltam todos no dia seguinte. E além disso você fica com mais problemas...

– O que você quer dizer com isso? Eu fiz muita besteira?

– Não! Você só ficou conhecida na festa como “A caçadora de garção” – Vítor disse rindo. – Você não largava o garçom, ficou a festa inteira atrás dele falando besteiras no ouvido dele! Ele deve ter agradecido a Deus quando viu você saindo da festa. – Vítor deu gargalhadas.

Giovana começou a rir também, mas perguntou meio séria:

– E porque você me deixou fazer tudo isso na festa? Você deveria ter feito algo...

– Eu não sabia que isto estava acontecendo, até que você e o garçom entraram na sala em que eu estava. Durante toda a festa eu estava preso nas lembranças do passado e na incerteza do futuro, e isso me fazia ficar um idiota...

– Idiota? Um completo idiota!

– Se é você quem diz... Mas a sua sorte foi que você estava em família! Todos te conheciam, menos o infeliz do garçom...

– Nossa... E meus pais? O que eles falaram? Eles devem estar envergonhados do que eu fiz na festa deles...

– A gente conversa com eles depois... Mas me promete uma coisa?

– O que?

– Nunca mais na sua vida você vai beber como você bebeu ontem! Alguém poderia ter se aproveitado da situação. E se você pegasse o carro estaria correndo risco de vida. E eu não quero te perder!

– Está prometido! – disse ela. – Mas eu quero que você me diga o porque que você estava estranho nos últimos dias.

– Eu tenho muito medo de te perder.

– Mas você não vai me perder!

– Ninguém pode garantir o futuro, nem mesmo você! Eu te amo!

– Eu também te amo!

Os dois se abraçaram. Eles naquela hora tinham aprendido lições diferentes.

Ele chegou a conclusão de que a vida é para ser vivida nos dias de hoje, porém não devemos esquecer do passado e nem deixar de pensar no futuro. Pois as lembranças que ficam na memória das pessoas, são somente as mais belas de toda a sua vida, e o futuro deve ser bem planejado, mas nunca adiantado.

E ela pensou nas pessoas que são dependentes de algo que as fazem esquecer da vida e dos problemas. E chegou a conclusão de que somente os covardes fogem de seus problemas, os fortes por maior que seja o problema o enfrentam sem medo algum. E isso, só essa coragem, já é uma grande vitória.

As crianças acordaram e foram até a cozinha, onde tomaram um café da manhã com muita fartura.

Capítulo 8

Na semana seguinte, Vítor resolve fazer uma surpresa para Giovana. Comprou flores, bombons e chegou mais cedo em casa, não fez nenhum barulho. Realmente foi uma surpresa! Vítor tinha visto com os seus próprios olhos a traição da mulher e sem que ela percebesse sua presença, saiu da casa com pensamentos horríveis.

O que passou na cabeça de Vítor? Claro, matar o amante e a mulher! Nada disso... ele tinha pensando em acabar com a própria vida. Os pneus de seu carro cantaram ao sair em alta velocidade para a sua própria destruição. Ele tinha em mente um prédio abandonado no qual ele brincava quando era criança. Na infância ele e seus amigos achavam que o prédio era mágico. Naquele prédio cada uma das crianças tinha o seu andar, mas o prédio todo era de todos, de todos aqueles que acreditavam na magia que tinha a construção abandonada.

Em poucos minutos lá estava Vítor de frente ao antigo prédio. O prédio que deveria lembrá-lo dos amigos. Vítor não se lembrava de nada, pensava somente na cena que tinha visto minutos atrás. E caminhou até a entrada do prédio.

Tudo estava em péssimas condições. Ao subir as escadas, que davam na recepção do prédio, ele sentiu um frio na barriga, pois aquelas escadas eram o início de uma subida que não teria descida, mas sim uma queda.

Finalmente ele entrou. Caminhou lentamente até o elevador, que é claro, estava interditado. No elevador tinha uma placa dizendo “Use a cabeça, use a escada”, Vítor foi então até as escadarias e começou a subir vagarosamente.

Primeiro degrau, ficou para trás. Segundo degrau, era o qual ele estava no momento. Ao levantar o pé para se elevar ao terceiro degrau Vitor escutou uma voz.

- Vítor? Meu amigo Vítor!! Há quanto tempo nós não conversamos... Por onde você tem andado? Parece que você se esqueceu de mim porque você nunca mais me escutou!

Vítor apesar de ter estranhado a voz, a ignorou. Mas a voz não parava de falar e não se importava em ser ignorada.

- Ah... que novidade! Você está me ignorando! Saiba que há tempos que você não me tem do jeito que você sempre me manteve. Talvez porque algo errado você fez. Eu tenho certeza que você fez alguma coisa que me transformou nessa coisa gorda que eu sou hoje!

Vítor ainda ignorava a voz. Mas ela continuava, não desistia!

- Eu sei que você deve estar pensando “coisa gorda? Se fosse gorda eu já teria visto”. Mas pode desistir de me procurar, porque você não pode me ver, mas você pode me sentir!

- Quem é você? – Perguntou Vítor esquecendo por um instante do ocorrido de tempos atrás. – Onde você está?

- Quem sou eu? Meu amigo... eu não posso revelar! Mas você pode me chamar de escada, apesar de não se lembrar de mim... escada é só para os mais íntimos.

- Escada? – Vítor riu cinicamente e continuou – Eu estou falando com uma escada?

- Eu diria que sim...

- Tudo bem... senhora escada! – riu mais um pouco – Mas me responda uma coisa!

- Com muito prazer, sempre estive com você para isso. O problema é que muitas vezes você não me escutou!

- Por acaso você está pesada porque eu estou em cima de você?

- Não, eu já imaginava que você fosse me perguntar isso! Sempre espero esse tipo de perguntas.

- Que tipo de pergunta eu fiz?

- Do pior tipo... essa é uma pergunta ridícula. Em outros termos, a mais idiota que eu já escutei! – respondeu a escada muito brava.

- Ei... você está sendo mal educada! Se você continuar assim, você vai ficar com peso na consciência e nem vai conseguir dormir a noite!

- Como você não conseguia quando enganava a sua mulher?

Vítor então caiu em si:

- Eu estou falando com a minha consciência? Você é a minha consciência?

- Eu sou a sua pesadíssima consciência! E por ser parte de você eu sei porque você está aqui! A sua mulher te traiu! Mas sabe de uma coisa? Não se culpe... eu era amiga da consciência da sua mulher e as coisas lá também não vão muito leves não!

- Você quer dizer que a Giovana sempre me traiu?

- Não sei... isso eu não fiquei sabendo! Eu soube o suficiente para que você me livrasse de um pouco de peso...

- Mas eu não quero saber, eu vou lá em cima e vou pular!

- Vai fundo! Melhor a morte do que ter que agüentar esse peso que eu venho carregando há anos!

A escada sabia o que estava falando.

Capítulo 9

Enquanto conversavam Vítor tinha subido lentamente as escadas, e já estavam no 1º andar. Vítor avistou uma porta e foi aconselhado a entrar pela escada, ou por sua consciência. A escada esperou em seu lugar de escada como faria qualquer escada. Ele lentamente se aproximou da porta e já não sabia se a chocante cena de sua mulher com outro era real ou se era coisa somente da sua imaginação. Começou a duvidar de seus olhos e ouvidos, enfim começou a duvidar de si mesmo por inteiro depois que conversou com a escada do antigo edifício.

Ao abrir a porta não viu nada e já ia voltando para trás quando escutou:

- Entre no apartamento! – gritava a escada para que Vítor a escutasse.

Ele sem perguntas entrou. Não havia nada no primeiro cômodo, assim como no apartamento inteiro. Ao verificar o último quarto da casa, ele voltou para onde estava a porta e muito bravo com a escada queria tirar satisfações com ela. Quando ia em direção da porta, esta se fechou e não o deixou sair. Isso mesmo... a porta não abria!

- O que é isso? – perguntou para si próprio.

- Nada – uma voz desconhecida lhe respondeu.

- Como nada? A porta se fechou sozinha, uma voz que eu nunca ouvi antes está conversando comigo e você só me responde que não é nada! Por falar em você, quem é vc?

- Eu não sou nada... Bem, explicando melhor, eu sou o nada...

Vítor riu cinicamente como fez das outras vezes:

- Nada? E deixa eu adivinhar, eu sou o único ser humano que teve esse enorme prazer de saber que você existe?

- É eu!! Ops, quero dizer, é nada!! Todo mundo me conhece. As pessoas sempre falam de mim, mas o que eu não gosto é que elas sempre falam “Isso não é nada...” mas na verdade estão falando de mim. Na verdade estão falando assim “Isso é nada..” ou “Isso não é alguma coisa...”. Você entende o que eu quero dizer?

- Acho que sim... mas sabe de uma coisa? Eu sempre achei que você não existisse! É uma grande mentirosa a pessoa que responde a alguma pergunta com a palavra nada. Tudo é alguma coisa, é impossível alguém ter o nada nas mãos, porque ninguém sabe o que é o nada.

- Eu existo sim como você já percebeu. Só que ninguém sabe como eu sou e como você mesmo disse, ninguém sabe o que eu sou. Acho que sou um enigma eterno.

- Enigma eterno?

- É, as pessoas não se importam comigo, falam de mim todos os dias e nem se importam se eu existo ou não!

- Então me diga como você é?

- Esse é o enigma eterno, as pessoas não sabem como eu sou.

- Você sabe como você mesmo é?

- Sei sim...

- Então me diga como você é, eu prometo não contar pra ninguém lá fora. Até porque se eu contasse alguém me colocaria num hospício! Pode confiar em mim.

- Está bem... Eu conto, mas você tem que me dizer antes como me imagina!

- Apesar de não acreditar na sua existência, eu sempre te imaginei como um lugar onde não houvesse nada, somente um lugar escuro. Posso comparar com o espaço mas sem os planetas, é lógico. E assim que eu te imagino!

- Tudo bem... mas se você me imagina assim não está me imaginando. Você não está imaginando o nada, você está apenas imaginando um lugar escuro ou até mesmo o espaço sideral. O nada é o nada, e sempre será assim. Quando descobrirem realmente o que eu sou, eu deixarei de ser o nada porque passarei a ser chamado pelo nome que me colocarem. O nada não é nada! Por enquanto...

- Sabe senhor nada? Eu tenho que pular de lá de cima e eu tenho pressa. Você poderia abrir a porta para eu sair?

- Você vai pular lá de cima?

- Vou

- Porque?

- Porque se eu pular lá de baixo eu não posso me estraçalhar lá em cima, entendeu?

- Me responde só mais uma coisa. O que você ganha com isso?

- Nada. Agora me responde você só mais uma coisa, o que você quis que eu entendesse dessa nossa conversa toda?

- Nada – respondeu-lhe o nada.

A porta se abriu e Vítor saiu rapidamente, ele estava bravo mas desta vez era com o nada!

Ao perceber a fúria de Vítor, a escada, que não podia ficar de bico fechado, logo perguntou:

- Aprendeu muita coisa com esse papo que você teve agora pouco?

- Nada!

- Nada é nada, tudo tem de ser alguma coisa.

Esse pequeno diálogo fez com que Vítor ficasse mais bravo. Claro, tudo era proposital, a escada estava irritando-o para que no andar superior ele pudesse aprender algo que, por mais ridículo que fosse, o fizesse esquecer do ocorrido que o levara estar ali naquele momento. Esse era um dos objetivos da escada.

Capítulo 10

Obedecendo às ordens da escada Vítor a pisoteava se dirigindo para o próximo andar.

– O que está me esperando lá desta vez? - indagou Vítor.

– Sei lá! Talvez seja Poseidon, o deus do mar!

– Não me trate como um ignorante que acredita em tudo o que os outros dizem. Eu não sou estúpido.

Chegaram no 2º andar. A porta na qual Vítor deveria entrar se abriu lentamente, tão devagar que ficou difícil perceber que ela se movia.

– A porta é toda sua... - disse a escada com ironia.

– Muito obrigado! - agradeceu Vítor com a mesma ironia e mais um pouco.

Sem medo e já acostumado que naquele prédio poderia acontecer de tudo, desde o possível até o impossível, ele se aproximou da porta, agora já totalmente aberta, e entrou.

O apartamento, que parecia ser novo porque tinha muitos móveis e aparelhos modernos, era de muito bom gosto. Vítor logo percebeu o tamanho exagerado da televisão, a pintura do teto que ao ser olhada transmitia a plena sensação de se estar olhando para o céu com a existência até de nuvens e o chão que era feito de um piso frio azul.

Andando devagar e maravilhado com o tubarão empalhado que estava dependurado na parede, tropeçou e perdendo o equilíbrio caiu no chão de um modo tão engraçado que o peixinho começou a dar gargalhadas, era tanta que ele quase morreu afogado!

Como era de se esperar, Vítor se levantou com cara de babaca, aquela mesma cara que todo mundo levanta quando leva um tombaço. Indignado com o riso começou a procurar quem o emitia.

– Ai, meu Deus, um peixe? Tinha que ser um peixe para caçoar da minha cara? Não poderia ser um bicho que impõe respeito como um leão, uma onça ou um tiranossauro rex? Não. Um peixe.

– Algum problema em relação ao meu ser? - quis saber o peixinho segurando o riso para não envergonhar mais ainda o ser humano.

– A sua mãe não te ensinou que é feio caçoar das pessoas? Ainda mais quando acontece uma coisa assim: acidental. - falou o acidentado.

O peixinho alaranjado fez cara de triste mas se lembrou do que havia acontecido a poucos minutos atrás e não agüentou, soltou mais uma gargalhada. Vítor ficou muito irritado, chutou com toda sua força o aquário que estava no chão. Foi o suficiente para que o peixe parasse de rir e dissesse em tom sério:

– Nunca mais faça isso, meu caro ser humano. Eu posso fazer da sua vida o que eu bem entender.

– Não pode, não! Acorde para a vida senhor peixe, você é só um peixinho de cor laranja e nada mais. Nem pernas você tem.

– Mas pernas não servem para nada, meu caro ser humano!

– Vejo que você é um peixinho muito burro. - disse Vitor tentando provocar o peixe - É claro que as pernas têm sua utilidade!

– Ah... já sei... As pernas servem para os humanos tropeçarem e assim me fazer rir. - e começou a rir de novo.

Vítor perdeu a cabeça e com fúria pegou o remo que estava preso na parede logo abaixo do tubarão empalhado e se preparou para dar um forte golpe no aquário do peixe.

– Vamos ver se depois dessa remada na cartilagem você ainda vai se divertir como antes.

Inexplicavelmente caiu um grande e barulhento trovão dentro do 2º andar que o transformou, de uma hora para outra e sem mais nem menos, num oceano. O teto virou céu, o piso as águas e a enorme televisão era agora um pequeno barco. Todos os outros objetos foram submergindo devagar ou rapidamente conforme o seu peso.

Vítor também caiu na água com o remo na mão antes de dar a pancada no peixinho. Ele agora, desesperando por estar em alto mar, nadava em direção ao barquinho. Não soltou o remo em nenhum momento, talvez fosse culpa do nervosismo.

Enfim, chegou ao barco. Era realmente pequeno, mal dava para ele se acomodar lá dentro. Descansou alguns minutos e começou a remar para qualquer direção, não fazia a mínima idéia de onde estava. Apareceu, porém, do meio das águas do mar um homem barbado que carregava um tridente e com ele um golfinho.

Assustado, Vítor assistiu à tudo.

– Vamos acertar as contas - disse o homem barbado.

Ele tinha voz de peixe e imediatamente Vítor percebeu.

– Quem é você?

– Eu sou Poseidon, o deus do mar. Talvez agora você me respeite! Caso contrário o seu remo não é páreo para o meu tridente.

Depois de saber que o peixinho era uma divindade Vitor amansou.

– Como todo bom deus faria eu vou tentar esquecer o que você queria fazer comigo - falou Poseidon se referindo à remada que iria levar.

– Prometo que o faço conseguir!

– Além disso eu estou precisando de uma favor seu!

– Tudo o que um deus pede, tem de ser realizado. Você quer que eu sacrifique esse golfinho que está do seu lado?

– Nem se Zeus ordenasse você tocaria nesse golfinho!

– Tudo bem... não está mais aqui quem disse. O que você quer que eu faça?

– Não é muito difícil. Graças à você o meu aquário caiu no fundo do oceano e quero que você vá buscá-lo.

Vítor sabia que isso era impossível e que morreria no meio do caminho mas não discordou do deus.

– Estou indo!

E mergulhou rumo ao fundo do mar.

Poseidon, vendo Vítor sumir adentrando as águas, disse ao golfinho:

– Como é fácil manipular um humano desse século, fosse um grego antigo já teria me mandado pastar!

– Ele parecia ter medo de você, não retrucou uma palavra que você disse depois que soube que você era um deus.

– Vá auxiliar o pobre homem na busca do meu estimado aquário! - falou Poseidon.

O golfinho que é um dos que forma a constelação de peixes nadou até encontrar Vítor.

– Olá. Estou aqui para te ajudar a pegar o aquário!

– Pegar? Você não pode pegar o aquário com nadadeiras.

– Mas eu posso nadar rápido! Por falar em nadar... você não sabe nadar muito bem, não é? - disse o golfinho honestamente.

– Como não? Fique você sabendo que eu peguei primeiro lugar num campeonato de natação que participei! - respondeu Vítor indignado.

– Na parte com terra da Terra pega o primeiro lugar quem chega por último? - perguntou com humildade o golfinho.

Vítor deu um grito e quase que engoliu água.

– Não!!

– Nossa, assim você me assusta!

– Então não pergunte besteiras!

– Posso fazer uma última pergunta? Eu juro que não é besteira.

– Tá bom, pode.

– Se você, que nada tão mal, conseguiu pegar em primeiro lugar o que aconteceu com os outros competidores? Morreram afogados?

Vítor não respondeu e o golfinho ficou triste porque queria fazer mais uma amizade e não estava conseguindo.

Continuaram nadando quietos por muitos litros.

– Estou perdendo a respiração... - falou baixinho para o golfinho para não gastar muito ar. – Acho que vou voltar!

O golfinho olhou para Vítor e viu que seu rosto estava ficando vermelho e com expressões de desespero. Mesmo assim disse:

– Você não pode desistir agora, Vítor! Você já nadou bastante.

– Mas eu não sei onde está o aquário. Ele pode estar bem perto ou bem longe... Além disso eu não consigo respirar!

– Se você desiste, nunca saberá onde estava o aquário. Longe ou perto ele se torna impossível para você!

– E como eu vou respirar? Estamos no fundo do mar, onde eu vou conseguir oxigênio?

– Hum... sei lá... isso é um problema! Durante toda a minha vida de golfinho sempre tive problemas que se resolveram quando eu menos esperava. Se nós estamos correndo atrás de algo que realmente queremos, coisas impossíveis acontecem a nosso favor. Pode demorar, mas acontecem se você nunca desistir!

Vítor estava boquiaberto mas devemos lembrar que o golfinho era do deus Poseidon.

– Você tem razão - disse Vítor se rendendo às filosofias do golfinho. – Acho que agüento mais alguns minutos... Vamos continuar!

Os dois observaram um navio naufragado mas não deram muita atenção a ele, só pensaram em como o navio era feio.

– Eu estou vendo! - gritou o golfinho feliz da vida ao avistar o tão procurado aquário.

– Então vamos rápido ou daqui a pouco morrerei afogado!

Lá estava o aquário que até então só tinha trazido problemas a Vítor. Ao se aproximarem para pegá-lo Vítor pensou em voz alta:

– Se eu gastei todo o meu oxigênio para chegar até aqui, como vou fazer para voltar tudo o que já nadei? Eu vou morrer!

– Fique calmo! Lembra-se quando eu disse que coisas impossíveis acontecem quando nós não desistimos do que procuramos?

– Lembro.

– Pois olhe bem para o aquário e verá que ele está de ponta cabeça e em seu interior tem ar. É o suficiente para voltarmos até a superfície.

Vítor enfiou a cabeça dentro do aquário de um modo que não deixasse o ar fugir e respirou. Tempos depois estavam ele e o golfinho entregando o aquário ao deus Poseidon que transformou o mar e o céu naquele belo apartamento no qual Vítor entrara.

– Obrigado por me deixar sair com vida, deus Poseidon - agradeceu a bondade do deus.

O deus, que estava em sua forma normal, não falou nada.

– Obrigado golfinho! Nunca me esquecerei da ajuda que me veio de você!

– Foi um prazer! - respondeu o golfinho muito feliz em ter sido reconhecido.

Vítor se dirigiu até a porta mais nadando do que andando e saiu do apartamento. Lá fora a escada o esperava para levá-lo ao próximo andar, mas antes perguntou:

– Como foi?

– É uma história muito grande... você vai ficar curiosa porque eu não vou contar!

Nem era preciso! A escada sabia tudo o que acontecia.

Capítulo 11

O 3º andar foi inacreditável segundo palavras do próprio Vítor. Nunca imaginava ele que algum dia fosse conversar com um criado-mudo. Isso mesmo, eu disse: um criado-mudo! Você, meu leitor, deve estar pensando como pode um simples móvel de uma casa falar? E ainda, para completar, é um móvel mudo! Eu explico: nem tudo é o que parece ser!

– E lá vamos nós de novo para dentro do apartamento! - comentou Vítor meio completamente desanimado.

– Nós? Graças a Deus é só você! - a escada riu e depois continuou - Acho que você não vai demorar muito, afinal você vai falar com um criado-mudo!

Vítor, sem fazer muita cera, entrou no apartamento que nem sala tinha, já começava no quarto onde tinha um armário, uma cama e o tão falado criado-mudo. Ele olhou cada um dos três móveis com detalhes e todos tinham a aparência de normais, inclusive o criado que foi o último a ser analisado por ele.

Apesar de tão pouco tempo de convivência Vítor sentiu que queria tocar naquele pequeno móvel e assim o fez. Deu algumas alisadas e abriu duas das três gavetas que existia no criado-mudo, ambas estavam vazias o que levou Vítor a achar que a terceira também estaria. De repente, na primeira gaveta, se abriram dois olhos, das partes laterais do criadinho nasceram braços e seus pés que antes eram somente apoio agora eram peças importantes para locomoção. E ao abrir e fechar a gaveta do meio, a única não aberta por Vítor, ele ouviu o seguinte som:

– Oiii!

O coração de Vítor foi parar na boca e ele ficou imóvel por ter visto algo que até exato momento só tinha visto nos maravilhosos desenhos de Walt Disney. Aquele ser estava vivo e era real!

– Olá - nesse momento Vítor falou para dentro e assim fez com que o criado-mudo não entendesse muito bem a sua resposta!

– O que? Você pode falar mais alto? Eu não estou entendendo nada do que você está falando... você é mudo?

Vítor falou que não com a cabeça.

– Mas então porque você não fala?

– Po-po-por-que vo-você fa-fa-fala! - respondeu ao móvel gaguejando.

– Mas é claro que eu falo! Você se assustou? Eu sou tão feio assim?

A pergunta fez Vitor balançar a cabeça de um lado para o outro outra vez.

- Olha... eu vou ficar aqui onde eu estou e quando você se recuperar desse choque você me avisa, tá?

Passaram poucas dezenas de minutos e o criado-mudo já não agüentava mais esperar e muito menos olhar para a cara de bocó com que Vítor ainda estava. Resolveu cantar a música do sapo que era de sua própria autoria.

­– Senhor sapo, coaxe aqui!
Nunca vá coaxar lá
Mas se aqui um monstro vier
Então pare de coaxar.
Se embora o monstro for
Ou estrago ele fizer
Não agüente tanta dor
Coaxe o tanto que quiser!

– Realmente... de mudo você tem só o nome! - resmungou ao recuperar da crise de bocoismo.

– Mas assim é a nossa vida, meu caro Vítor!

– Eu te disse meu nome?

– Não, você não me disse.

– Então como você sabe que eu me chamo Vítor?

– Vamos considerar que sou um criado-mudo e não um criado-surdo.

– Tudo bem! Já estou cansado desse negócio de que você é um criado-mudo que fala e tal... Vamos parar com essa besteira e vamos logo ao ponto onde você quer chegar!

O móvel olhou bem fundo nos olhos de Vítor e falou:

– O que eu gostaria que você soubesse é que as pessoas que não falam não são completas idiotas e elas têm opinião, muitas vezes melhor elaborada do que a dos outros. Só que não conseguem botar tudo o que pensam para fora. Talvez elas saibam que serão censuradas por um mundo de ignorantes ou por um bando de desanimados.

– Talvez as pessoas que não expõem suas idéias sejam egoístas e por isso não mostram seus grandes pensamentos.

– Algumas pessoas são assim, mas a maioria é gente boa. São pessoas que só querem que os outros entendam o quanto suas idéias podem dar certo e as ajudem a transformá-las em realidade.

– É raro encontrar pessoas que ajudem as outras, não é mesmo?

– Você tem razão, meu caro Vítor! Mas é muito mais difícil encontrar alguém que saiba que o outro está precisando de ajuda sem que ele diga uma só palavra.

– Como assim?

– Você já teve animais de estimação?

– Já, muitas vezes.

– Eles falavam com você?

– Não no nosso português claro do dia a dia!

– Vejo que está me entendendo. Nossos gatos ou cachorros falam com a gente através de olhares, movimento do corpo e até mesmo barulhos feitos com a boca! Basta nós lembrarmos de um cachorro triste e um cachorro alegre! O cão triste solta sons tão deprimentes que dá até pena do bichinho. Já o cão feliz corre para lá e para cá, late e balança bastante o rabinho. Mesmo não falando uma palavra sequer da nossa língua, conseguimos entender os nossos animais.

– Isso acontece com as pessoas?

– Claro que acontece! Eu e você falamos a mesma língua, porém se dissermos a mesma frase em tonalidades diferentes não estaríamos dizendo a mesma coisa. O tom de voz pode ter mais significado do que a própria frase, ele diz quando as pessoas estão brincando, falando sério, quando estão tristes ou alegres.

– Mas isso não tem muita coisa a ver com o que você está me explicando... você tem que me explicar sobre o não falar!

– Tudo bem! Sabe nos dias que tinha visita na sua casa, na época de sua infância? Lembra-se de algum?

– Sim, me lembro.

– Já fez alguma coisa errada perto de seu pai e das visitas?

– Já! E sei muito bem o que o olhar do meu pai queria dizer.

– O que queria dizer?

– Que eu não iria sair ileso daquela situação... Que o pau ia quebrar depois que a visita fosse embora.

– Isso mesmo...

– Você tem razão! Pessoas que nunca dizem nada podem ser uma das que mais falam. Para entendermos isso é só prestarmos atenção em seus olhares, movimentos corporais e muitas, muitas outras coisas.

– Acho que você entendeu...

E com a mão, mostrou a porta. Muitos, desse gesto, entenderiam “Vai embora, seu feioso” mas Vítor soube decifrar corretamente o que o criado-mudo quis dizer. Ele entendeu: “Vamos, eu te acompanho até a porta.”

Vítor se despediu fazendo um sinal com a cabeça para o móvel e este respondeu fazendo um sinal com a mão.

– Como foi o nosso episódio? – perguntou a escada.

Vítor olhou para a escada e disse sem dizer uma palavra através dos olhos: “Como se você não soubesse....”

Capítulo 12

Naquele mesmo andar, Vítor viu uma outra porta.

– Ai, meu Deus! Lá deve morar outro louco... – pensou.

E sua consciência falou:

– Não tenha tanta certeza disso!

– Mas eu já sei o que vai acontecer. Eu vou entrar, esperar um pouco, vai aparecer um bicho qualquer e aí, depois, nada o que acontecer poderá ser considerado real!

Mesmo não querendo ir ele entrou no apartamento vizinho ao do criado mudo. Em certas horas, mesmo não querendo, a gente acaba fazendo o que nossa consciência manda.

E Vítor entrou.

O apartamento era chique, mas como estava um pouco cansado ele decidiu sentar e esperar o inesperado!

Ding Dong. Ding Dong. A campainha tocou! Vítor saltou do sofá assustado e sem saber direito o que fazia abriu a porta! Era um homem.

– Serviço de Correio! – e mostrando um grande pedaço de pau continuou – Parabéns, você acaba de levar o maior pau da sua vida!

– Mas como o senhor sabe que esse pedaço de pau é para mim? Aposto que nem sequer sabe o meu nome!

– Não é necessário! Nós do Serviço de Correio somos treinado para achar o impossível. E se você quer saber não foi muito difícil te achar!

– Como o senhor me achou?

– É simples! Dá uma olhadinha aqui! - e mostrou uma pequena parte do pau onde estava escrito o destinatário – Está vendo? Está escrito “Para o babaca do prédio”. Foi muito fácil te achar!

– Mas...

– Assine aqui, por favor.

E mesmo Vítor não assinando o carteiro gritou:

– Obrigado, senhor! - e foi embora.

Então, Vítor fechou a porta e foi se deitar no sofá mais confortável que tinha na sala e, em questão de segundos, adormeceu!

O sono estava gostoso e o sonho que ele teve foi assim:

“Isaac Newton estava andando sob uma macieira e de repente caiu uma maça na sua cabeça e ele, emocionado, disse: ‘Descobri a lei da gravidade!’.

Beethoven estava andando sob uma macieira e de repente caiu um piano na sua cabeça e ele, emocionado, disse: ‘Descobri que eu posso tocar somente sentindo o piano!’.
Vítor estava andando sob uma macieira e de repente caiu um pedaço de pau bem grande na sua cabeça e ele, com muita dor, disse: ‘Descobri que levar o maior pau da sua vida te faz sofrer!’.”

E depois da pancada do sonho acordou. Estava meio tonto, sua cabeça doía. Talvez, a pancada do sonho houvesse mesmo acontecido. Isso não importava, Vítor se sentia tão mal interiormente que não tinha mais forças para nada. A única coisa que conseguiu fazer naquele momento foi chorar. Chorava baixinho, praticamente não fazia barulho algum. Quem sabe ele tivesse medo ou vergonha de que alguém o visse naquele estado? Vítor chorava como um adulto.

Essa é a verdade: sabe-se que uma pessoa virou adulta quando ela pára de fazer o escândalo que as crianças fazem na hora de soltar as lágrimas.

Chorou por muitíssimo tempo. Só a escada sabia porque ele chorava tanto... A culpa era dela.
Ainda com os olhos vermelhos e molhados por algumas gotas de lágrimas, Vítor saiu do apartamento que o havia feito chorar por um bom tempo.

Nem ele e nem a escada disseram uma só palavra naquele momento. E mesmo assim, Vítor se dirigiu ao apartamento do andar superior, andava lentamente e pensativo, estava chocado, enquanto se movia para o 4º andar.

Capitulo 13

Enfim, chegou no 4º andar! Como demorou!

Vítor aproximou-se da porta com a mesma lentidão que percorreu todo o caminho que o fez chegar ali onde estava. Já não tinha lágrimas nos olhos. Quando frente a frente com a porta, levantou a mão e apertou a campainha levando um baita susto ao escutar o som de uma sirene. Tirou o dedo da campainha e o barulho parou. E apertando-a novamente a sirene tocou. Parecia a sirene de uma ambulância ou da polícia. Só parecia...

Ao abrir a porta, disse uma senhorita que usava óculos:

– Tudo bem, tudo bem, já escutamos o sinal e já estamos todos dentro da sala de aula. Não é mais necessário tocá-lo.

Vítor a olhou nos olhos e pensou:

– Deve ser uma professora... Tomara que seja uma professora normal.

Era mesmo uma professora. Sem perder muito tempo ela continuou:

– Ande logo! Já está atrasado. Entre e sente-se no seu lugar sem fazer barulho.

Pode não parecer, mas ela não estava brava e falou isso calmamente.

Vítor deu o primeiro passo para o apartamento e nele viu o quanto grande era a sala de aula da senhorita. Estava cheia e só não demorou para achar seu lugar porque as criança, seus novos colegas, o ajudaram.

A carteira até que era confortável. O que Vítor não estava suportando era a aula de matemática.

– Um triângulo tem três lados, o quadrado tem quatro lados, e o círculo, quantos lados tem?

Rapidamente, Edgar, um menino gordinho que sentava na frente de Vítor respondeu:

– Dois lados, professora! O lado de cima e o lado de baixo.

– E como você chegou a essa conclusão?

– É simples, professora! É só observar a minha bolinha. Quando eu a jogo e a faço rolar, eu vejo que, apesar dela estar girando, ela só tem o lado de cima e o lado de baixo. Sempre. Se você quiser pode fazer o teste na sua casa.

– Eu entendo, Edgar! Mas, vamos complicar mais as coisas. E se eu fizesse um pontinho com uma caneta na sua bolinha e a fizesse rolar? Onde estaria o pontinho? Com certeza, em alguma hora ele não estaria nem no lado de cima e nem no lado de baixo.

– Olha, professora! Se o problema é tão simples para que complicar? As pessoas têm essa mania de querer ver o que não existe onde não tem nada. A vida já é muito complicada sem as complicações. Quer um exemplo?

– Quero.

– Se eu disser você me dá dez pelo resto da vida? Sabe? Para facilitar para a senhora!

– Com certeza!

– O melhor exemplo de que a vida já é complicada é que ninguém gosta de complicações mas todo mundo gosta de complicar.

– É um bom exemplo.

E, ao tocar o sinal, todos saíram e foram para o recreio. Vítor foi o último a sair da sala para ir até o pátio. Não demorou muito e um dos alunos se aproximou dele e perguntou:

– Qual o seu nome?

– Vítor, me chamo Vítor e você?

– Lucas.

E um curto silêncio aconteceu sendo interrompido por Lucas.

– De onde você veio?

– Não sei! De verdade, eu não sei. – respondeu Vítor.

– Você é um mentiroso e também...

Não houve tempo para Lucas terminar a frase porque o sinal tocou novamente e todos os alunos tinham de voltar para a sala de aula.

Indignado, Vítor reclamou:

– Mas o que é isso? O nosso recreio é só esse tempinho mixuruca? Isso não está certo.

– Está mais que justo esse tempo de recreio. – disse a senhorita nervosa como só Deus sabe, e continuou – Sente-se já no seu lugar e não reclame. Caso contrário te ponho as orelhas de burro, que é o que você merece. Tamanho homem e ainda não saiu do primário.

Aquela não era a mesma senhorita de antes. Para dizer a verdade, era. Vou tentar explicar: era mas não era. Apesar da mesma cara, não tinham os mesmos comportamentos. Talvez fosse um clone! Isso não importa, o importante eu já disse e repito: não tinha os mesmos comportamentos.
Vítor e todos os outros alunos já estavam sentados.

– Não se assuste, coleguinha! É normal ela virar bruxa depois do recreio. – cochichou Edgar aos ouvidos de Vítor virando-se para trás.

– Obrigado pelo aviso, amiguinho.

– Só estou te avisando porque ela vai acabar com o próximo coitado que for chamado. Você é novo e talvez seja você.

Vítor olhou bem nos olhos de Edgar e arregalou os próprios. Enquanto isso a professora disse:

– Lucas, levante-se.

Toda a classe se sentiu um pouco aliviada, mas só um pouco.

– E agora! O que vai acontecer, Edgar? – perguntou Vítor ao novo colega.

– Não sei! Nesse lugar aqui tudo pode acontecer: desde a coisa mais maravilhosa do mundo até a coisa mais maligna. Só vendo para saber...

Lucas já estava de pé e por muitas vezes engoliu seco.

– Onde está o seu trabalho, moleque? – esgoelou a senhorita.

Lucas nada respondia. A única coisa que conseguia fazer naquele momento era engolir seco.

Mais furiosa do que antes gritou mais alto do que da última vez:

– Responde, seu inútil!

Era notada sua tamanha irritação pelas veias e pela coloração vermelha, quase roxa, que apareceram em sua face. Somente algo divino poderia transformar aquela situação escandalosa e inútil em algo, pelo menos, normal.

De repente, uma rosa branca caiu do céu em alta velocidade fincando-se na cabeça da senhorita. Todos viram o que tinha acontecido, menos ela. Nem sequer sentiu a rosa branca ter o cabo introduzido na sua fábrica de idéias.

À medida que ia gritando mais com o pequeno aluno, a rosa branca ia ficando de cor vermelha e quanto mais isso acontecia mais seu nervosismo ia diminuindo. Pouco tempo depois a rosa já estava vermelha, o rosto da senhorita de aparência amigável e todos na sala aliviados.

Como se não tivesse acontecido nada, a senhoria continuou a conversa com o aluno, mas desta vez num tom doce e calmo.

– Então, porque é que você não fez o trabalho?

– Sabe o que é, professora? - respondeu Lucas – Eu não tenho equipe, ninguém quer fazer o trabalho comigo?

– E você sabe o motivo para isso?

– Eu acho que é porque eu sou exigente nas coisas que faço e também porque ninguém concorda com as minhas idéias... mesmo com eles sabendo que minhas idéias são boas e criativas.

– Que coisa feia, classe! – disse a senhorita para o restante da classe e depois voltou a falar com Lucas - E você tinha muitas idéias para o seu trabalho?

– Tinha sim, senhorita! Ter idéias é fácil, o difícil é encontrar alguém que te ajude a realizá-las. As pessoas têm medo de falharem ao tentar levar uma idéia para a realidade e ninguém pode ser assim. Se temos uma idéia boa, bem planejada e que nos faça feliz, devemos fazê-la real. Tomando, claro, todos os devidos cuidados necessários. E sempre, sempre ajudando a construir as idéias dos outros, para que sejamos ajudados quando precisarmos.

– Mas porque você não fez o trabalho sozinho?

– Porque eu gosto de saber o que as outras pessoas pensam. Desse jeito o trabalho fica melhor e mais gostoso de ser feito.

– Tudo bem, dessa vez eu vou deixar você entregar o trabalho amanhã.

– Obrigado, professora!

E a senhorita perguntou para a classe:

– Alguém quer fazer o trabalho com o Lucas?

Ninguém se candidatou. Assim é o mundo, Lucas! Assim é o mundo...

O sinal bateu e todos os alunos, correndo, saíram da escola para ir para casa. Vítor fez o mesmo, e ao passar pela porta chegou no corredor por onde tinha entrado. Dali foi rapidinho para o 5º andar sem dizer nada para a escada.

Realmente! – pensou a escada - Ninguém quer estudar, mas todo mundo quer nota no final do ano. Que coisa... Que mundo...

Capítulo 14

– Já sei... no 5º andar, como em todos os outros, eu vou encontrar a porta de um apartamento, vou entrar e alguma coisa estranha vai tentar me dar uma lição de moral, uma lição de vida. – disse Vítor para a escada.

– Que bom que você já está se acostumando, Vítor!

– É só o que aconteceu até agora, não é preciso ser um gênio para saber isso.

– Não posso te dizer muita coisa, Vítor, mas sempre espere o inesperado. Conselho de consciência!

– O inesperado aqui é impossível...

– Não me atreveria a dizer isso em um prédio como esse!

– Você é você! – falou já perdendo a paciência com a escada.

– Eu sou eu, logo, você é eu e eu sou você. Somos a mesma pessoa e por isso tudo o que eu acho você também acha, mesmo que não queira assumir.

– A senhorita escada poderia ficar quieta por alguns instantes? Será que isso seria possível? Tomara que isso algum dia ocorra!

Enquanto resmungava com a escada, Vítor não notou que já estava no corredor do 5º andar. Só parou de reclamar e percebeu que já estava onde estava quando a lâmpada que iluminava aquele corredor caiu como um tiro certeiro na cabeça dele. Pequenos cacos de vidro se espalharam pelo chão junto com o corpo de Vítor, que caiu duro e de costas.

Apesar do tombo ele não desmaiou e se levantou imediatamente se dirigindo à única porta que tinha no corredor. Por mais que girasse a maçaneta a porta não se abria e ele não desistiu, pois pensava que alguma hora aquela porta iria abrir.

Mas a porta não se abriu. Vendo aquela cena ridícula a lâmpada falou em alto e bom som:

– Adoraria te dar uma luz aí, amigo Vítor, mas isso não será possível... – e olhou ao seu redor apontando para os caquinhos que estavam espalhados.

– Justamente o que eu não esperava: uma luz falando!!!

– Luz não, amigo Vítor, sou uma lâmpada. Luz é o que você precisará para continuar a subir e passear pelos outros andares. Sabe por quê?

– Por quê?

– Porque é a minha luz que dá o livre arbítrio de se abrirem e se fecharem quando quiserem às portas desse prédio. Sem a minha luz elas só podem ser encontradas fechadas, ou melhor dizendo, trancadas.

– E o que eu tenho com isso?

– Você vai ter que me arrumar! Você terá que colar cada pedacinho um no outro com incrível perfeição. Caso contrário ficará aqui para sempre! Como eu já disse, as portas não se abrem, em hipótese alguma.

Vítor correu em direção à lâmpada para chutá-la, mas no meio do caminho pisou em um dos pedacinhos de vidro que se quebrou em mais pedacinhos e por isso, parou!

– Nada disso, amigo Vítor! Quanto mais nervoso você ficar mais difícil vai ser para me colar com a perfeição que é necessária. Veja só, você pisou em um caquinho e ele virou vários caquinhos menores... Azar o seu e sorte a minha, porque vou ter uma raridade, vou ter uma pessoa para conversar comigo durante muitíssimo tempo!

– Não acredito nisso! Isso, realmente, não estava na minha lista de coisas impossíveis que são possíveis de se acontecer aqui nesse prédio!

– Quer uma dica, amigo Vítor?

E já mais calmo Vítor a aceitou:

– Fala, gênio da lâmpada!

– Espere o inesperado!

– Eu já escutei isso em algum lugar... não me lembro onde foi!

– Todos dizem isso! Deve estar enterrado no fundo da sua consciência.

Vítor olhou para a lâmpada e fez com a cabeça o sinal de “é... talvez!”, porém, ele logo perguntou:

– Mas como eu vou colar seus caquinhos se aqui não tem cola?

Olhando para todos os lados, tentando achar a cola ouviu a resposta da lâmpada:

– Eu não posso ser colada com cola! Tenho, obrigatoriamente, que ser colada com cuspe.

– Tenho que te colar caquinho por caquinho e ainda com cuspe?

– Espere o inesperado!

Vítor começou a colar. Enfiava o dedo na boca, passava nos pedacinhos e depois tentava encaixar um por um, como se fosse um quebra-cabeça. A lâmpada não parava de falar, estava muito feliz por estar sendo colada e, além disso, não queria perder a oportunidade de conversar com alguém de verdade.

Ele, no entanto, não dava a mínima bola para ela por dois motivos: o primeiro era que o assunto dela não era nada interessante para Vítor e o segundo era que com o dedo indo e vindo da boca, não dava mesmo para conversar.

– Sabe que eu sou uma lâmpada mágica? – perguntou a escada.

O assunto começava a ficar interessante para Vítor, que já prestava atenção nas palavras da amiga e que já tinha arranjado um jeito de falar com o dedão na boca.

– Continue, amiga lâmpada, continue!

– Mas eu não posso realizar três desejos, o que eu posso fazer é responder três perguntas, qualquer que sejam elas.

– Isso já esta de bom tamanho! Posso fazer a primeira?

– Não, eu tenho que estar num perfeito estado de colagem!

– Traduz...

– Primeiro, você tem que me colar direitinho... Como tínhamos combinado!

– Ah... Além de abrir as portas você também responde perguntas! Isso é interessante.
– Sim, mas só para a pessoa que é dona do cuspe que me colou!

– Entendo...

Depois de algumas horas colando, Vítor terminou. A lâmpada já estava com sua luz, assim, as portas do prédio já podiam abrir e fechar segundo o livre arbítrio das mesmas.

– Só mais um favorzinho, amigo Vítor! Coloque-me lá no teto que é o meu lugar!

– Pois não, amiga lâmpada! Eu também tenho um favor para pedir.

– Pode dizer.

– Espere-me aqui, enquanto eu vou dar uma passadinha naquele apartamento – e apontou para a única porta de apartamento que lá tinha.

– Não perca tempo, amigo Vítor! Aquela porta é falsa, não chega a lugar nenhum, para dizer a verdade jamais se abre.

– Mas você disse que todas se abrem, só depende delas mesmas e da sua luz.

– Espere o inesperado, amigo Vítor!

Vítor ficou muito feliz ao saber que não teria que entrar naquele apartamento, seria um impossível a menos na lista dele e antes que a porta se resolvesse se abrir ele disse:

– Vou fazer as minhas três perguntas agora.

– Estou escutando, amigo Vítor!

– Você vai me responder tudo o que eu quiser saber?

– Vou.

– Qualquer coisa?

– Qualquer coisa.

– Você não está me enganando?

– Não.

– Então, eu quero saber se...

– Eu já respondi às três perguntas as quais você tinha direito! Não posso responder mais nenhuma!

– Mas eu sou seu amigo, amiga lâmpada! Bem, pelo menos eu achava que fôssemos amigos! Afinal, nós conversamos durante horas e eu te colei com a máxima perfeição que eu consegui. Fiz isso porque achei que você quisesse ser minha amiga!

A lâmpada não falava nada e por isso Vítor continuou:

– Eu, realmente, não esperava isso de você!

– Espere o inesperado! – respondeu a lâmpada.

Isso foi o suficiente para que Vítor pensasse em quebrar a lâmpada novamente, porém, ele se lembrou que se o fizesse não poderia sair dali.

Então, antes que cometesse alguma besteira, saiu rapidamente pela porta que levava até o 6º andar.

Capítulo 15

Ainda no embalo com que vinha do 5º andar, Vítor chegou ao 6º e ao ver a porta do apartamento entrou, fechou a porta e os olhos, respirou fundo e agradeceu por estar seguro lá dentro. Ao respirar fundo sentiu um cheiro diferente, sentiu cheiro de plantas. Aquilo era esquisito! Quando abriu os olhos para conferir onde estava deu de frente com uma enorme floresta, olhou para trás e a porta tinha sumido.

Fez, então, a única coisa que poderia ter feito: andou.

Meia hora depois avistou uma casinha, era pequena, porém, não muito. Era pequena no sentido de que as portas, e todo o resto, eram menores do que as que temos em nossos quartos. Teve a mais simples idéia de toda a face da Terra, a de ir até a casinha e ver se encontrava alguém.

E já estava quase chegando na cerca que rodeava a casa quando escutou uma voz que vinha por suas costas:

– Olhe! Que surpresa... Temos visita!

Vítor virou-se e viu um velho, um velho com orelhas pontudas e com o rosto e as mãos meio amarelados. A estatura dele era pequena, posso dizer que proporcional ao tamanho da casinha da qual falei há pouco tempo. E ao reparar no tom amarelado do velho, Vítor perguntou:

– O senhor está doente?

– Sim, meu filho! Eu sou um duende! – respondeu o velho com um sorriso.

– Você está de brincadeira comigo? – brigou Vítor.

– Claro que eu poderia ser seu amigo... A minha casa é aqui perto, vamos até lá para conversarmos melhor. Vou te apresentar a minha mulher! Nós, os duendes, adoramos fazer amigos.

Vítor percebeu que ele era meio surdo e que queria ser seu amigo, porém já tinha se dado mal em casos de amizade. E, por isso, tentou se desculpar e ir embora dali:

– Eu tenho de ir embora, já é muito tarde!

– Não diga uma coisa dessas! Minha senhora não vai te achar um covarde. Sabe? Ela já está acostumada com pessoas iguais a você que se perdem na floresta. Você não é o primeiro e nem será o último.

E antes que Vítor falasse, ele continuou andando e falando, impedindo assim que Vítor fosse embora

– Qual o seu nome?

– Vítor.

– Igor? Bonito nome você tem...

– E o senhor, como chama?

– Esplendor Colama. Igor Esplendor Colama. Vou te dizer o meu nome, quer saber qual é?

Vítor balançou a cabeça fazendo sinal de sim!

– Meu nome é Gulawinsk e, antes que eu me esqueça, a minha mulher se chama Serespolia.

– Gulawinsk? Serespolia? Que nomes esquisitos!

– Obrigado, garoto. Como eu já disse o seu nome também é bonito!

E chegaram na casinha do velho duende.

– Serespolia! – gritou Gulawinsk pela mulher – Cheguei e trouxe alguém para o jantar!

– Que maravilha! Temos visita – exclamou a duende que também tinha orelhas pontudas e a pele meio amarela.

– Entre, meu rapaz! Espere-me enquanto troco de roupa.

Vítor abaixou a cabeça e entrou na casinha. Sua sorte era que os duendes tinham em casa um teto bem mais alto que o necessário. Depois ficou sabendo que o teto havia sido feito para que o casal pudesse receber visitas que não fossem duendes.

– Com muita freqüência recebemos visitas. A Dona Onça, que é vizinha nossa, vem todas as noites aqui. – explicou Serespolia a Vítor.

– Mas a onça não come vocês?

– Não, imagine! Vivemos em grande harmonia com os animais! Somos nós que pintamos o pelo da onça, somos nós que arrancamos os pezinhos que estão para nascer nas cobras com um alicate e assim por diante. Por isso, todos os animais da floresta gostam de nós.

E com uma roupa diferente Gulawinsk chegou:

– Sobre o que falavam, querida?

– Sobre os sinais da sua testa. – respondeu ela.

– Entendo. Sabe, Igor? Eu também adoro os animais da floresta. O bicho com quem eu tenho mais paixão de trabalhar é o sapo. Você gosta de sapo?

Vítor balançou a cabeça de um lado para o outro. Ele ainda não tinha a experiência de Serespolia. Esta perguntou para Vítor:

– O que você está fazendo na floresta? Está perdido?

– Mais ou menos, a história é longa e complicada, você não entenderia.

– Talvez sim, talvez não! Você não quer me contar?

– Querer eu quero, mas você não vai entender do jeito que eu quero!

– Cada um tem a sua interpretação própria das histórias que lê ou escuta, porém, posso te garantir que nenhuma dessas interpretações é errada, é apenas algo que o nosso “eu” lá no fundo precisa entender. – explicou Serespolia.

– O duende Gulawinsk é um exemplo?

– Sim, ele é um exemplo. Ele, por estar com o ouvido sujo, não entende nada direito, mas entende o suficiente para tratar a todos com respeito. Ele é um duende e essa é a sua função.

Gulawinsk, que depois da resposta negativa de Vítor tinha ido procurar uma varinha mágica para com ela tentar limpar os ouvidos, voltou para a sala com as mãos vazias. Para dizer a verdade ele nem ligava de ter as orelhas sujas, gostava era mesmo de balançá-las, enquanto uma estava apontada para frente a outra estava voltada para trás e vice-versa. Era engraçado ver um duende velho fazer aquilo!

Ia haver uma festa na floresta naquela noite e Gulawinsk não poderia aparecer de orelhas sujas. Serespolia pediu para Vítor que o ajudasse a limpá-las.

– Eu ajudo! Assim conhecerei o Gulawinsk de verdade e ele saberá que não me chamo Igor.

Os dois foram até o fundo da casinha, onde ficava uma mangueira, para tentarem tirar toda aquela sujeira dos ouvidos de Gulawinsk.

– Deixa-me ver a sua orelha!

– Ovelha? Não tenho ovelha!

Vítor o pegou pela pontinha pontiaguda da orelha e a segurou com tanta força que o duende gritou. Além disso, para que ele aprendesse que era importante lavar os ouvidos deu uns puxões para lá e para cá, quase as arrancando, sempre fingindo ser sem querer!

Para começar o banho Vítor molhou as orelhas e em seguida jogou muito sabão em pó. Depois, com uma escova de dente limpava até onde alcançava, jogou água novamente e as enxugou.

– Você escuta o que eu falo? – quis saber Vítor.

Mas Gulawinsk não respondia e por isso levou mais uns dois ou três puxões de orelha. Assim, o duende reclamou:

– Não puxe assim as minhas lindas orelhinhas, senão elas vão parecer orelhões de telefone!

– Que? Não estou escutando nada! – e puxou mais duas vezes!

– Ai! Ai! Pára de fazer isso! Você quis me ajudar e não conseguiu, agora está querendo me arrancar o meu brinquedo favorito.

E, dizendo isso, Gulawinsk mexeu as orelhinhas para frente e para trás como gostava de fazer. Ainda as mexendo falou rindo:

– Você não consegue resolver o meu problema! Rá, rá rá!

– Rá, rá, rá! Consigo sim!

E Vítor tapou o próprio nariz, fechou a própria boca e forçou o ar pelo nariz, sinalizando para que o velho duende fizesse igual. E ele fez! Depois de várias tentativas saíram, fazendo o barulho de uma explosão, de cada ouvido cinco quilos de cera. É bastante para um duende tão pequeno.

– Agora você me escuta?

– Sim, Igor! Com perfeição... Obrigado por me ajudar!

– Que bom! Mas eu queria te dizer que o meu nome é Vítor! Entendeu? Vítor!

– Já terminaram? – disse a voz de Serespolia vindo de dentro da casa.

– Sim, querida! – gritou o duende.

– Então, entrem logo. Senão vamos nos atrasar para a festa!

Entraram. Tudo indicava que Vítor iria à festa e dormiria ali, mas não foi isso que aconteceu. Após se arrumar e sentar na sala para esperar, Vítor notou a foto de um outro duende e perguntou para Serespolia que chegava na sala naquele instante:

– Quem é esse duende?

– É o nosso filho! Nós não sabemos o que aconteceu com ele.

– Qual era o nome dele?

– Ele se chamava Igor.

Vítor não disse nada, mas ficou pensativo.

Já pronto, Gulawinsk entrou na sala e disse:

– Vamos para a festa?

– Vamos – concordaram os outros dois.

– Mas antes de sair pela porta eu gostaria de dizer que foi muito bom te rever! Ouviu, Igor?

E falando isso o casal saiu pela porta da frente em direção à festa e foi seguido por Vítor que mesmo sem entender nada foi atrás para poder perguntar, mas quando passou pela porta se achou de novo dentro do prédio. Já estava fora do apartamento e poderia seguir caminho para o 7º andar. Porém, comentou com a escada:

– Eu acho que Gulawinsk entendeu desta história algo impossível!

E a escada disse:

– Nós entendemos das histórias que lemos ou escutamos aquilo que precisamos entender.

E Vítor seguiu caminho para o 7º andar.

Capítulo 16

Vítor, após ter subido as escadas, parou em frente da porta do apartamento do 7º andar e disse para a escada:

– Vou entrar logo! Assim isso tudo acaba logo!

– O que espera? – disse ela.

E assim fez Vítor, entrou no apartamento.

– Hum... uma sala! Bem, vou esperar o bicho que vai falar comigo sentado aqui, nessa cadeira.

No momento em que já estava sentando, ele se lembrou, pensando consigo mesmo:

– Ei! E eu for conversar com essa cadeira? Ela vai gritar, fazer escândalo e... Quer saber? Acho melhor eu perguntar!

Vítor falou para a cadeira:

– Oi, senhora cadeira! Tudo bom com a senhora? Eu sou quem você estava esperando!

A cadeira nada respondia e, então, ele falava mais alto, como se estivesse falando com alguém surdo.

– Alô! Cadeira! Tem alguém aí? Responde!

Como ela não respondeu, ele, já de saco cheio, sentou para esperar. Sentado percebeu que tinha duas placas pregadas na parede. Uma dizia “Sorria, você está sento filmado!” e a outra dizia “Sorria, você está fotografado”. Vítor não ligou para nenhuma das placas, nem mesmo para a que falava de fotografia, afinal era normal filmar lugares por motivos de segurança, pensou que a fotografia estava sendo usada pelo mesmo motivo.

De repente, ele viu uma luz que acendeu e apagou rapidamente na outra sala. Na primeira vez que isso aconteceu ele conteve sua curiosidade esperando sentadinho, mas da segunda vez ele não agüentou e foi até a outra sala ver que luz era aquela que acendia e apagava tão rápido.

A luz era o flash de uma máquina fotográfica que ao ver Vítor perguntou:

– O que você faz aqui?

– Eu vim tirar fotos! – mentiu Vítor – Você é a máquina que tira fotos?

– Não, não sou! Eu sou a filmadora! – corrigiu a máquina fotográfica.

– Ah! Já entendi! Você é daquelas que gosta de tirar sarro, não é? Saiba que a piada foi boa!

– Que piada? Eu estou trabalhado e não brinco em serviço. Vou chamar a filmadora que é quem tira as fotos aqui.

Vítor confuso quis saber:

– Mas se é a filmadora quem tira as fotos, o que você, a máquina fotográfica, faz?

– Eu filmo, dhãã! E depois de ter dito isso gritou para a filmadora que tirava as fotos – Filmadora, tem um cara querendo tirar fotos! Venha aqui!

E chegou a filmadora que tirava fotos.

– Pois não, cavalheiro! Queira sentar-se aqui, nesse banquinho.. – disse a filmadora para Vítor.

– Obrigado, mas não vou me sentar enquanto não me explicarem esta história direito!

– Você está vendo esse cara? É um babacão! E todos os seus clientes vão ser assim! – explicou a máquina fotográfica para a filmadora, já que aquele era o primeiro dia de trabalho da filmadora.

– Ei... não sou nenhum babacão! Babacão é o seu papai e a sua mamãe! – gritou Vítor bravo com a máquina fotográfica.

– Vejo que conhece a minha família! – se surpreendeu a máquina.

– Não conheço ninguém.

– Então, como sabe que meu pai e minha mãe são babacas? – perguntou a máquina que depois continuou – Para dizer a verdade a minha família inteira é de babacas!

– É modo de dizer, não quis ofender a sua família!

– E não a ofendeu. Só que o que você falou é verdade.

A filmadora se pôs a rir dizendo:

– A família da máquina fotográfica é uma família de babacas! Lá só tem babacas!
Olhando bem fundo na lente da filmadora que tirava fotos, a máquina fotográfica que fazia filmes, muito séria, falou:

– Está rindo de que? A minha família é idêntica à sua! Todos os problemas que eu tenho você também tem e não tem nenhuma vírgula de diferença entre a sua história e a minha!

A filmadora, depois de ter escutado aquilo, não riu mais! Quem achou o fora que a filmadora levou engraçado foi Vítor que riu baixinho, mas riu. E depois de ter sido intimado pelos olhares das duas, parou de rir e perguntou:

– Qual é a história de vocês?

– Bem! – disse a máquina fotográfica que filmava – O que tem de mal em você saber a história? Mas eu vou ter que te contar com a boca, afinal eu não posso te mostrar o filme, não sei filmar! E não pense você que a filmadora é mais inteligente do que eu, ela sabe não sabe tirar fotos!

– E como vocês trabalham?

– A gente faz tudo com má vontade... – disse a filmadora. – É o meu primeiro dia aqui e eu já aprendi isso!

– Mas assim nenhum trabalho fica bom!

– Bem! Posso começar a história? - perguntou a máquina fotográfica.

– Pode! – respondeu Vítor.

– Bem! Tudo começou numa indústria bem longe daqui, onde eu e a filmadora fomos fabricadas. Eu pertenço à família das máquinas fotográficas e a minha amiga pertence à família das filmadoras. Porém, nossos pais queriam que fôssemos diferentes e que seguíssemos uma profissão diferente da que eles tinham. Foi assim que nasceu a idéia de que eu, uma máquina fotográfica me tornasse uma filmadora e de que a filmadora se tornasse uma máquina fotográfica. Fomos, portanto, criadas desde o primeiro dia de loja até o dia em que fomos compradas para ser o que não éramos!

– Que história triste! – se comoveu Vítor. – Vocês duas são tão iguais e estão juntas...

– Acho que tivemos sorte em morarmos na mesma loja e mais sorte ainda ao sermos compradas pela mesma pessoa. – comentou a filmadora.

Vítor não via motivos para que os pais daquelas máquinas se intrometessem em algo que é de extrema escolha pessoal e que é uma das coisas mais importantes que pode ser conquistadas por alguém. É claro que estamos falando da profissão!

Enquanto pensava nisso ouviu as palavras mais dolorosas que alguém poderia dizer, primeiro disse a máquina fotográfica:

– O que me adianta meus pais quererem que eu seja uma filmadora se eu nasci para tirar fotos?

E depois a filmadora:

– O que me adianta meus pais quererem que eu seja uma máquina fotográfica se eu nasci para fazer filmes?

Realmente, Vítor não sabia o que responder! Para dizer a verdade ele sabia, mas achou melhor dar o seguinte conselho:

– Como vocês não moram mais com seus pais, acho que vocês podem seguir a carreira que mais gostam. Afinal, se vocês realmente gostam isso é possível! Eles não precisam ficar sabendo...

E tanto a máquina fotográfica como a filmadora gostaram da idéia e resolveram pô-la em prática. A partir daquele instante a máquina fotográfica tirava fotos e a filmadora fazia filmes.

Muitas fotos foram tiradas e muitos filmes foram feitos antes da partida de Vítor. Recordações do novo amigo era o que não queriam deixar faltar nenhuma das duas.

Durante a despedida Vítor recebeu também recordações: fotos e uma fita de vídeo com imagens dos três.

– Para você não se esquecer de boas recordações... – disse a filmadora.
E Vítor falou:

– Não se preocupem, nos humanos boas recordações são guardadas na memória! Até a vista!

– Até a vista! – disseram as duas vendo Vítor sair pela porta.

A consciência de Vítor pensou:

– O que me adianta as pessoas quererem que eu seja o que não sou se eu nasci para ser o que eu sou?

Capítulo 17

No 8º andar Vítor tomou choque ao tentar abrir a porta do apartamento. Tudo indicava que lá dentro tinha algo de elétrico. Antes de que Vítor colocasse as mãos na maçaneta para novamente tentar abrir a porta, ele ouviu a escada perguntar:

– Caro, Vítor, o que está fazendo aqui?

– Estou tentando abrir essa porta, não está vendo? Não consigo porque ela dá choque!

– Não, não me referi ao 8º andar. Refiro-me ao prédio todo. Por que está subindo até o último andar?

Vítor, pensou, pensou, pensou e respondeu:

– Não sei... Eu estou subindo porque... Acho que estou subindo porque não me deixam nem descer e nem ficar parado. Escada, se você não percebeu, em cada andar eu tenho que conversar com alguma coisa ou com alguém, só assim eles me deixam passar para o próximo andar!

– Eu já percebi isso sim, Vítor! Mas qual o seu objetivo ao chegar lá em cima?

– Nenhum! Estou subindo só por subir mesmo...

A escada se sentiu um pouco feliz, afinal ela tentava fazer com que Vítor se esquecesse de que ele estava subindo porque queria pular de lá de cima. O plano dela parecia dar certo e se tudo continuasse como está, Vítor não tentaria suicídio jogando-se do último andar.

– Vamos! – disse a escada - Tente abrir a porta mais uma vez.

E assim fez Vítor! A porta se abriu e ele entrou todo contente. Não conseguiria esperar muito pois estava elétrico, talvez por curiosidade de saber o que viria, talvez pelos choques levados momentos atrás mesmo. Acho que se vocês considerarem a segunda opção a história fica mais engraçada, mas isso vocês são quem decidem, são vocês quem estão imaginando a cena.

– Ai, meu Deus, uma pilha gigante! – exclamou Vítor assustado. – Espere aí... – continuou ele – Eu estou assustado com o que? Já vi de tudo nesse prédio, não vai ser uma pilha com pés e mãos, e aposto que até fala, que vai me pôr medo.

– Isso mesmo, não tenha medo de mim. Sou uma inofensiva pilha, não consigo eletrocutar nem uma formiga já eletrocutada! – confessou a pilha.

– Pobrezinha... – pensou Vítor com dó da pilha. – O que você faz aqui?

– O que eu faço? Eu estou trabalhando. E é com muito orgulho que eu faço isso, sabe porque? Porque eu adoro o que eu faço!

– Que maravilha! Qual é o seu trabalho?

– Meu trabalho é simples. Meu trabalho é testar.

– O que você testa? – quis saber nosso Vítor.
A pilha respondeu orgulhosa:

– Eu testo pessoas!

Vítor olhou para a pilha com os olhos arregalados e antes que ele pudesse falar alguma coisa ela continuou.

– Você está vendo aquela máquina ali? Aliás, qual o seu nome?

Vítor procurando pela máquina na direção que lhe foi apontada respondeu:

– Chamo-me Vítor. Não estou achando a tal máquina, vamos até lá.

– Tudo bem. – disse a pilha.

Foram de encontro à máquina de testar pessoas. Quando já estavam em frente dela a pilha falou:

– Vítor, esta é a minha máquina de testar pessoas. Vou te explicar como ela funciona.

Vítor não disse nada, mas pensou muita coisa, como por exemplo:

– Será que é a intenção dessa pilha me testar? Afinal, pelo que eu sei, eu sou uma pessoa.

A máquina de testar pessoas parecia uma balança, dessas que são encontradas na farmácia. A diferença é que essa máquina tinha um pequeno teto.

– Está vendo – continuou a pilha – aquele negócio ali em cima que parece um teto?

– Estou.

– É lá que eu ponho o lado positivo das pessoas. Já na parte de baixo, aquela onde a pessoa pisa, ponho o lado negativo da pessoa.

Vítor, querendo saber o que poderia acontecer com ele, perguntou:

– Onde é o lado positivo de uma pessoa?

– Na cabeça, costuma está na cabeça!

– Então, a parte negativa está nos pés?

– Exatamente, Vítor. Mas quero que fique bem claro: há exceções! Já tive alguns casos onde a parte positiva estava nos pés e a negativa na cabeça?

– O que você faz com um cidadão desses?

– Faço o meu trabalho, ou seja, viro-o de ponta cabeça. Na marra, mas eu viro! Eles ficam bravos.

– O que você faz com eles depois desse teste?

– Depende. Se forem pessoas boas, eu as guardo porque são pessoas úteis. Se forem pessoas que não prestam, eu jogo fora.

– Gozado, - rio Vítor- de onde eu venho fazemos a mesma coisa com as pilhas!

– E é por isso que vou ter que testar você!

As pernas de Vítor tremeram e veio nele uma grande vontade de ir ao banheiro fazer xixi.

– Nada disso, aqui nem tem banheiro! Pilhas não fazem xixi. Entra logo na minha máquina e não reclama.

Entrou na máquina, teve sorte por sua cabeça ser o seu lado positivo e por isso não ficou pendurado pelos pés.

– Vejo aqui que o seu lado positivo é maior que o negativo. Você é uma pessoa boa.

– Você vai me guardar para sempre aqui nesse seu apartamento?

A pilha riu e explicou:

– Não, não vou te guardar numa estante com várias outras pessoas boas, até porque essa estante não existe. Quando eu disse que eu guardo as pessoas boas me refiro à proteção que eu lhes dou. É uma proteção elétrica, extremamente positiva, que ajuda a afastar as energias negativas.

– Mas, pilha, carga elétrica positiva atrai carga elétrica negativa. E, para completar, afasta outras cargas positivas.

– Não se preocupe, Vítor. Nós pensamos em tudo! As cargas positivas que protegem as pessoas boas são modificadas em laboratório, portanto, atraem as energias positivas e afastam as negativas.

– Carga modificada em laboratório? – estranhou Vítor.

– É, assim como vocês, lá na sua terra, modificam bactérias e outras coisas, aqui a gente consegue modificar cargas elétricas.

Vítor acreditou na história e se sentiu mais forte que de costume. Mas isso não é nenhuma novidade. Sabemos que cargas positivas ao nosso redor nos dão um ar de felicidade inexplicável, sem falar, mas já falando, que o impossível se torna possível.

– Acho que você deve partir! – disse a pilha.

– Você tem razão! Já está na hora de ir embora.

A pilha olhou para o chão, fez beicinho, estava triste e quase chorou.

– Não ligue, Vítor, eu sou uma pilha muito emotiva.

– Tudo bem, eu entendo...

– Vamos, aperte a minha mão.

Vítor aceitou e apertou a mão da pilha levando um razoável choque, mas que deu para assustá-lo.

– Aaaaaahhhh! – gritou na hora que levou o choque.

A pilha deu gargalhadas e mostrou para Vítor aquele velho truque do choque durante o aperto de mão que estava na palma da sua.

Vítor também riu e de bem longe gritou:

– Tchau! Muito obrigado pelo campo de força!

– Não foi nada, Vítor. Continue sempre com grandes energias positivas! Adeus!

Vítor, que já tinha entrado no apartamento contente, saiu dele muito mais contente ainda, devido ao negócio do “ar de felicidade inexplicável”.

– Como foi lá dentro? – quis saber a escada.

– Fantástico! Ganhei até presente!

– E onde está o presente?

– Está comigo, ao meu redor!

– Onde? Não estou vendo! – insistiu a escada.

– Não se faça de tola. Você é a minha consciência, sabe de tudo o que acontece comigo e é a maior responsável por eu ter ganho esse presente.

A escada não disse mais nada, só queria seu mérito reconhecido. Seguiram quietos para o 9º andar.